terça-feira, 3 de julho de 2012

A provocação turca


Erdogan tem um projecto: minar e dominar a Síria. Enfrenta, porém, uma questão prévia: está minado e dominado pela Tríplice Aliança. 
Todas as suas exibições de músculo têm controlo próximo e remoto. 
É um guerreiro islâmico enfiado numa couraça cristã, 
empunhando uma lança judaica. 
Nada melhor para um cristão da  OTAN  e um judeu do Colonato do que 
uma cruzada entre muçulmanos.




por César Príncipe [*]


O abate de um F-4 Phantom turco pelas defesas antiaéreas sírias forneceu o pretexto para mais uma escalada. Num primeiro momento, o Governo de Ancara admitiu que a aeronave houvesse invadido o espaço aéreo e o Governo de Damasco lamentou a ocorrência. O atrito poderia e deveria situar-se e sanar-se a nível diplomático se as reacções se pautassem pelo princípio da boa-fé e da boa vizinhança. Mas rapidamente foi accionada outra resposta. Os Gabinetes de Guerra da Tríplice Aliança (OTAN/Israel/Monarquias do Golfo) rapidamente transferiram o problema para a Agenda Militar e para o Jornalismo de Campanha. Evidente se torna que os actores externos do conflito montaram esta ratoeira, no sentido de explorar a hipótese de uma intervenção da OTAN, sustentada na inventona de um ataque a um membro da organização. Dado que a Rússia e a China têm inviabilizado, até agora, o recurso à força com cobertura do Conselho de Segurança das Nações Unidas, os ingerencionistas, além do agravamento das sanções económicas por livre arbítrio e da facilitação de campos de treino e corredores de infiltração, armas, direcção operacional, mercenários, serviços de inteligência, dinheiro e dispositivos mediáticos, resolveram iniciar o teste do plano B. Se a experiência de campo se mostrar repetível e rentável, esperam-se novas fricções e ficções de fronteira, não sendo de excluir atentados em território turco, imputáveis às autoridades sírias. As encenações e as dramatizações são molduras clássicas das artes da beligerância. Os Estados Unidos são verdadeiros artistas a forjar e a empolar factos e a agir e a reagir em conformidade e consequência. Cuba, Vietname, Jugoslávia, Iraque – para citar algumas evidências-padrão – fazem parte do histórico maquinador e manipulador do Pentágono, da CIA e dos "compagnons" de roteiro. A aposta na violência, ora selectiva, ora total, ora declarada, ora dissimulada, as manhas e as patranhas, tudo faz parte do jogo de cartas contra a Síria, com ou sem ONU. No teatro sírio, como se comprovou no teatro líbio, para lá da dimensão interna, é indisfarçável a dimensão internacional: a Turquia, ciosa de um papel extraterritorial, disponibilizou-se como plataforma de agressão e candidata à partilha de despojos, cooperando com os Estados Unidos, donos e senhores da OTAN, estes com um guião de controlo geo-estratégico e de matérias-primas e de remoção da Rússia e da China do mapa mediterrânico, e com Israel, que projecta varrer da zona os regimes hostis e pró-palestinianos, procurando também via verde na estrada de Damasco para alcançar Teerão, liquidando, pelo caminho, o obstáculo do Líbano, onde Telavive sofreu a humilhação da retirada militar de 2006. Neste quadro e nesta trama, as monarquias do Golfo comportam-se como marionetas, cientes de que o seu destino está ligado ao complexo petrocastrense ocidental. Entretanto, a NATO, a da exemplar ilegalidade da intervenção e da inclemente devastação na Líbia e na Jugoslávia, socorre-se de um Livro de Estilo para idiotas úteis, inspirado na literatura columbófila e sentimental:

"Exemplo de desinteresse do Governo sírio pelas normas internacionais da paz, segurança e vida humana". [1]

PORTUGUESES DE PÁRA-QUEDAS? 

Já o primeiro-ministro da Turquia, Erdogan, ameaça com uma "resposta militar, avisando a Síria para se manter longe das fronteiras" [2] , enquanto a Turquia instala armas e bagagens na raia, procede a actos intrusivos de espionagem e faculta livre-trânsito a terroristas e instrutores de diversas procedências. Consta que, entre os corpos mercenários, há rasto de portugueses. Pára-quedistas "libertadores" ou profissionais globais – dirão os Comentadores da "Psico" e os doutorandos em Comunicação. PS/Passos Coelho estaria a pensar nestas oportunidades de emprego quando aconselhou os jovens a emigrar? Um amigo, cujo nome não revelo, devido às funções que desempenha no espaço público, colocou-me a interrogação num diálogo sobre os contornos e meandros do conflito. Cumpre ao primeiro-ministro português ou que simula exercer tais funções (a troika "é quem mais ordena") mandar os Serviços Especializados da República inteirar-se das alegadas actividades de mercenários lusos, certamente ao arrepio da "lei internacional" e descaradamente contra um Estado da ONU. Confirmadas as denúncias, cabe ao super-ministro Gaspar inquirir dos vencimentos dos mercenários, a fim de que concorram para os "sacrifícios" em sede de IRS ou IRC, pois todas as receitas são bem-vindas para salvar os bancos e os mensalões do BCI/Bloco Central de Interesses. A Imprensa espanhola já confirmou a detenção de "hermanos" mercenários. As Forças Armadas da Síria capturaram centenas de estrangeiros a soldo. A dupla PP/Passos/Portas estará a conjecturar planos de resgate de eventuais encarcerados pelos fiéis de Assad? O Supremo Comandante sugerirá o destacamento de submarinos para se lavarem nas águas de Tartus, defronte da esquadra russa?

O VALENTE SOLDADO ERDOGAN 

Em 2010, após o sangrento e letal assalto israelense à "Flotilha da Liberdade", que transportava 750 passageiros de 60 nacionalidades e 10.000 toneladas de ajuda humanitária, o Governo de Erdogan chorou a morte de nove turcos e avisou atiladamente o Estado de Israel: "vai sofrer as consequências". E foi mais longe. Atente-se na viril advertência: "o ataque, ocorrido em águas internacionais, não respeitou nenhuma lei internacional. De facto, era um motivo para guerra. No entanto, como é próprio da grandeza da Turquia, decidimos agir com paciência". No entanto, o Estado de Israel, com apólice de seguro contra todos os riscos, emitida pelos USA e pela UE, recusou-se a emitir uma desculpa, leve que fosse. Jeová quando troveja não se desculpa com um ataque de tosse. É a doutrina do Estado teocrático israelita. No entanto, Erdogan engrossou a voz de Alá para consumo turco, árabe e islâmico, anunciando o envio de forças navais para escoltar futuras missões: "Não permitiremos que tais navios sejam mais uma vez alvo de ataques de Israel". No entanto, um funcionário israelita desvalorizou o verbo de Erdogan, fantasiado de patrulhador e pacificador do "mare nostrum": "É muito difícil imaginar que um membro da OTAN como a Turquia vá tão longe". [3] No entanto, Erdogan proclamava ir. Num assomo de bombista-suicida, manifestou a intenção de se deslocar, em carne e osso, à Faixa de Gaza, integrado numa flotilha inatacável. Saldo da retórica: não disparou uma canhonada de simulacro e desafronta, não mandou uma Armada Invencível proteger os amigos dos palestinianos e os palestinianos, muito menos pôs o pé na bloqueada e martirizada Gaza. Claro que, com a Síria, o cenário é objectivamente preocupante: Erdogan tem o apoio da  OTAN  e de Israel. Por instigação dos aliados e bazófia otomana, pode passar da provocação primária e da peitaça propagandística à guerra aberta e generalizada, puxando dos galões de pequeno Átila para júbilo do Grande Átila.

HITLER KISSINGER ÁTILA:  GUERRA DO ESQUECIMENTO 

Quem não embarcar em televisões e jornais do Império concluirá que o crescente turco nunca foi um modelo de virtudes civis e militares. É patético e revelador que os accionistas da Aliança Atlântica, com a Turquia incluída, seleccionem um curdo para a presidência do Conselho Nacional Sírio, sabendo-se das implacáveis perseguições, dos assassinatos massivos, das prisões e torturas, das deportações e dos acantonamentos, das discriminações sociais e culturais que o regime turco tem imposto e impõe como política aos curdos (20% da população residente na Turquia oficial). Política possível, graças à complacência e à cumplicidade da  OTAN /da UE/dos USA, nomeadamente na tipificação do Partido dos Trabalhadores do Curdistão como "organização terrorista". Igualmente se tornaram rotineiras as incursões terrestres e normalizados os bombardeamentos aéreos do regime de Ancara contra os curdos no Iraque. Não importa que a Turquia pratique terrorismo de Estado e acolha terroristas sem pátria. A "dupla moral" não incomoda a dita "comunidade internacional", cognome dos USA e da  OTAN . A chamada de curdos à boca de cena apenas pretende consensualizar artificialmente a simbólica anti-Assad, a fim de mover todas as peças do tabuleiro. Os inimigos de uma Síria laica e independente trabalham com uma Agenda Particular na Agenda Multilateral. O regime turco raramente prestou provas democráticas e humanistas, não tendo grande património de direitos universais para exportação. Lembraremos alguns lances do calendário turco-otomano e de seus líderes, cujo ADN ainda pulsa nas veias de Erdogan: em 1974, com o fechar de olhos da  OTAN  e dos USA e o beneplácito de Kissinger, o eterno criminoso sem mandado de captura do TPI (consultar cadastros da guerra do Vietname, dos golpes da Indonésia e do Chile e do morticínio de Timor-Leste), o regime turco lançou a "Operação Átila", ocupando o Norte do Chipre, forçando a partida de 180.000 cidadãos gregos (80% do efectivo residente), situação de facto, ainda não reconhecida pela ONU; em 1925-1930, milhares de curdos foram liquidados, porque mais uma vez, se ergueram em luta pelos seus direitos étnicos e nacionais; em 1915-1917, é ditado e concretizado o genocídio arménio (1,5 milhão de massacrados a tiro e a sabre, mortos à fome e à sede, queimados vivos, afogados, deportados para campos de concentração nos desertos da Síria e do Iraque, escravizados, violados), após a eliminação de 20.000 arménios em 1909, programa de aniquilação total interrompido pela derrota alemã de 1918 e pela adesão da Arménia à URSS; em 1914, o regime otomano aliou-se à Alemanha prussiana, participando ao lado dos Estados mais fora-de-lei e sanguinários na Primeira Guerra Mundial. Estes traços do poder turco-otomano são de vincar numa altura em que Ancara franqueia bases e linhas de penetração a rebeldes e mercenários e dá sinais de elevar a parada provocatória. Na realidade, a memória não é deliberadamente cultivada. O genocídio arménio, apesar de perpetrado há mais de 90 anos, só foi reconhecido por 21 países. Atribui-se a Hitler, uma observação, tão confiante na impunidade como gélida e cínica, feita aos comandantes da Wehrmacht, antes da invasão da Polónia e do holocausto dos guetos de Varsóvia: "Afinal, quem fala hoje do extermínio dos arménios?" 4

ENTRE A NATO E O COLONATO 

Curtíssima resenha esta das violências e reincidências durante o séc. XX de uma grande potência euro-afro-asiática que decaiu para potência regional de rédea curta, mas ainda com tiques de Átila e Osman. Muito haveria a reportar e a ilustrar sobre o Imperialismo Otomano (1299-1922), que, no séc. XVII, cobria 5.000.000 km2, de Gibraltar ao Iémene do Sul, passando pela Europa Central. Como os demais impérios, expandiu-se, consolidou-se e desintegrou-se. A oposição dos submetidos foi o factor determinante da derrocada e da redefinição de identidades. A árvore tentacular do califa Osman, "uma árvore com raízes em três continentes e ramos até aos céus", deu lugar a um viveiro de 40 nações. Átila (406-453), o rei huno, legendado como "flagelo de Deus", que aterrorizou a Europa romana, sitiando Roma e Constantinopla, já não reina em Ancara. Os novos chefes bárbaros têm sede em Washington, Bruxelas e Telavive. Erdogan é um súbdito da Tríplice Aliança. Potencialmente perigoso. Ambiciona disputar ao Irão e ao Egipto a regência islâmica, mas as suas ambições regionais, partidárias e pessoais estão condicionadas. Alimentará alguma impulsividade e nostalgia pós-Átila/pós-Osman/pós-1922 no modo como cuida de curdos e sírios. É dos traumas pós-imperiais e do oportunismo predatório. Mas contém-se a lidar com Israel. Não irá "tão longe". Quem imaginará Erdogan na pele de "flagelo" do séc. XXI? O primeiro-ministro da Mesquita Azul consolar-se-á, porventura, a ler e a reler a "Vida de São Hipátio":

"Mais de 100 cidades foram capturadas e Constantinopla chegou a estar em perigo e a maioria dos homens pôs-se em fuga. Houve tantos assassinatos que se deixou de contar os mortos. Assaltavam igrejas e conventos. Degolavam monges e donzelas". [5]

Erdogan tem um projecto: minar e dominar a Síria. Enfrenta, porém, uma questão prévia: está minado e dominado pela Tríplice Aliança. Todas as suas exibições de músculo têm controlo próximo e remoto. É um guerreiro islâmico enfiado numa couraça cristã, empunhando uma lança judaica. Nada melhor para um cristão da  OTAN  e um judeu do Colonato do que uma cruzada entre muçulmanos. Na Turquia, Alá é grande enquanto Jeová consentir. São as "malhas que o Império tece". [6] Erdogan nunca terá ouvido falar de Fernando Pessoa. O maior poeta português do séc. XX. "Todas as manhãs ao amanhecer/Meu coração é fuzilado na Grécia". [7]Também nunca terá lido Nazim Hikmet. O maior poeta turco do séc. XX.
[1] Expresso, 27/06/2012.
[2] Al Jazeera/Agência de Notícias Anatólia, 09/09/2011.
[3] Agência France Press/Deutsche Welle, 09/09/2011.
[4] Folha de São Paulo, 24/04/2009.
[5] Calínico, Vida de São Hipátio. 
[6] Pessoa, Fernando, O menino de sua mãe, Contemporânea, n.º 1, III série, 1926.
[7] Hikmet, Nazim, Angina pectoris (1948), Casa Editora Abril, 2007, Havana. 


[*] Escritor, jornalista. 

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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